Como foi visto no capítulo anterior, no início do século XVI dois grandes eruditos – o Cardeal Ximenes e Erasmo – lançaram-se à ingente tarefa de publicar o Novo Testamento em grego, procurando unificar os vários textos gregos existentes.
Para a boa compreensão da história do “Textus Receptus” é preciso partir do famoso editor francês Roberto Estéfano (1503-1559), que publicou quatro edições do texto grego. Sua terceira edição (1549) é o primeiro texto onde aparece um aparato crítico. Foi esta edição que se tornou o modelo para a King James Version de 1611 e até o século XIX foi o paradigma de todos os textos gregos publicados. A sua quarta edição (1551) não pode ser olvidada na história do texto bíblico, porque pela primeira vez aparece a divisão em versos numerados.
Embora a expressão “Textus Receptus” se refira à terceira edição de Estéfano, esta não foi usada por ele.
Outro nome intimamente ligado com o “Textus Receptus” é o de Teodoro Beza (1519-1605), que entre 1565 e 1604 publicou nove textos bíblicos. O texto de Beza pouco difere da quarta edição de Estéfano. A importância do seu trabalho consiste no seguinte: suas edições visavam popularizar o “Textus Receptus”. Os tradutores de King James fizeram largo uso das edições de Beza.
Em 1624, os irmãos Elzevirs, impressores alemães, lançaram uma edição do Novo Testamento Grego, em cujo texto predominava o de Estéfano, mas havia também um pouco do texto de Beza. No prefácio da segunda edição se encontravam as seguintes palavras: “No texto que é agora recebido por todos, não apresentamos nada mudado ou alterado.” A expressão “Textus Receptus” nasceu desta mesma frase em latim: “Textum ergo habes, nunc ab omnibus receptum: in quo nihil immutatum aut corruptum damus.” Os autores desta simples frase jamais sonhariam que ela fosse o início de uma grande contenda na história do texto bíblico.
Edições Posteriores ao “Textus Receptus” – Edições Críticas
O próximo estágio na história da Crítica Textual do Novo Testamento é caracterizado por assíduos esforços para reunir manuscritos gregos, versões e citações patrísticas, que diferissem do “Textus Receptus”. Por quase dois séculos, eruditos rebuscaram as bibliotecas e museus da Europa e Oriente Médio, procurando provas para o texto do Novo Testamento. Durante este período, estudiosos publicaram Novos Testamentos baseados em melhores manuscritos, Brian Walton, que publicou a grande Bíblia Poliglota (1657) baseada no exame de 16 manuscritos. John Mill, também de Oxford, trabalhou 30 anos no preparo de sua edição de 1707, baseando-se em manuscritos, versões e Pais da Igreja.
Bentley, empregando em vários lugares pessoas capazes para confrontarem manuscritos e versões, reuniu material para uma definitiva edição que suplantasse o “Textus Receptus”, mas, infelizmente, por questões alheias à sua vontade, não chegou a completar sua edição do Novo Testamento.
Entre os colaboradores de Bentley estava J. J. Wettstein de Basiléia, que após quarenta anos de pesquisas publicou em Amsterdam (1751) uma edição do Novo Testamento. Sua obra tem grande valor até hoje, não apenas pelas notas marginais e os seus prolegômenos (prefácio longo a uma obra científica), mas também pelo aparato crítico, onde pela primeira vez os manuscritos unciais são indicados pelas letras maiúsculas e os manuscritos minúsculos pelos números arábicos, Pertencem ainda a esta fase Semler (1725-1791) e Bengel (1687-1752), que individualmente publicaram uma edição do Novo Testamento Grego. Estes Novos Testamentos estavam baseados em manuscritos diferentes daqueles que foram usados para o “Textus Receptus”. Contudo eles divergiram daquele texto e os apresentados por eles poucas variantes apresentavam relacionadas com o texto consagrado.
Declínio do “Textus Receptus”
O primeiro erudito a se opor frontalmente ao “Textus Receptus” foi o alemão Karl Lachmann (1793-1851).
Seu objetivo ao editar o Novo Testamento não era reproduzir o texto original, pois ele cria ser isso uma tarefa impossível, mas procurar reconstruir o texto corrente no fim do IV século. Para isso usou manuscritos unciais primitivos, versões latinas, a Vulgata de São Jerônimo e o testemunho de alguns Pais da Igreja. Após cinco anos de trabalho, publicou em Berlim (1831) uma edição do texto grego, com uma lista de passagens nas quais diferia do texto dos irmãos Elzevirs. Por esta divergência foi duramente atacado. No prefácio de sua segunda edição Lachmann atacou seus críticos por preferirem, cegamente, um texto familiar, mas inferior, a um primitivo muito mais exato.
Seu valor está em chamar a atenção dos estudiosos para a conveniência de aceitarem um texto superior e não se contentarem com aquele, tradicionalmente conhecido e aceito por todos.
Constantino Tischendorf
Ninguém conseguiu fazer mais pelo texto bíblico do que este autor. Quando estudava teologia, seu professor de grego, Winer (autor de uma famosa gramática) despertou nele um desejo profundo para pesquisar manuscritos antigos, a fim de reconstruir a mais perfeita forma do Novo Testamento Grego. Com este objetivo em mente, dedicou-se de corpo e alma a esta sublime tarefa, pois escrevendo à sua noiva ele declarou: “Resolvi dedicar-me a uma tarefa sagrada – a luta para conseguir a forma original do Novo Testamento.”
Sem receio de contestação pode-se afirmar que ninguém fez mais do que Tischendorf para restaurar o texto original grego. Basta ter em mente que foi a pessoa que publicou mais manuscritos e produziu mais edições críticas da Bíblia Grega.
Entre 1941 e 1842 ele preparou oito edições do Novo Testamento Grego. A edição mais importante é a oitava, publicada em dois volumes, acompanhada por um rico Aparato Crítico, no qual Tischendorf reunia tudo sobre variantes textuais que ele ou seus predecessores tinham achado em manuscritos, versões e Pais da Igreja. Em virtude do grande esforço despendido, seu estado de saúde não lhe permitiu continuar o trabalho, por isso sua obra foi completada por seu discípulo – Gaspar Renê Gregory.
O texto de sua oitava edição, de acordo com Nestle difere da sétima em 3.572 lugares. Foi acusado de dar excessivo valor à evidência do Códice Sinaítico, que ele tinha descoberto entre o lançamento da sétima e da oitava edição.
Tischendorf deixou de lado o “Textus Receptus”, não levando também em conta a classificação dos manuscritos em famílias.
Samuel Tregelles
Na Inglaterra, o intelectual mais bem sucedido em afastar-se do “Textus Receptus” foi Samuel Tregelles. Desde menino, demonstrando grande talento e curiosidade intelectual, já fazia planos para uma nova edição crítica do Novo Testamento. No intervalo de 1857 e 1872 publicou um texto grego equipado com o mais completo aparato de variantes das versões que já aparecera.
Dotado de extraordinária força de vontade, Tregelles conseguiu vencer a pobreza, a oposição e a saúde precária, apresentando notável trabalho no terreno da Crítica Textual. Sua dedicação ao trabalho era um ato de adoração, pois no prefácio de sua obra declarou “na crença total de que esta deve ser para o serviço de Deus e para ser útil à Sua Igreja.”
Westcott e Hort
Estes dois intelectuais ingleses, após um dedicado trabalho de 28 anos publicaram dois volumes: O Novo Testamento no Original Grego com Introdução e Apêndice, onde os princípios críticos seguidos por ele são minuciosamente expostos.
Depois de exaustivas pesquisas na procura de manuscritos antigos, os estudiosos desejaram classificá-los em grupos, assim várias tentativas foram feitas, mas quase todas infrutíferas quanto aos seus resultados. Coube a B. F. Westcott e F. J. A. Hort, dois renomados professores da Universidade de Cambridge, a classificação dos manuscritos do Novo Testamento em quatro famílias, por eles denominadas: Siríaca, Ocidental, Alexandrina e Neutra.
Para eles a mais importante destas famílias era a neutra, por estar mais próxima dos autógrafos e por contar com os dois mais famosos códices unciais – Sinaítico e Vaticano. A preferência de Westcott e Hort por esta família é partilhada por insignes vultos da Crítica Textual, mas, estudos posteriores têm indicado que eles foram otimistas demais quanto à pureza do texto neutro. Pode-se notar ainda que o texto Alexandrino não é distinto do texto neutro, por isso, hoje, aparece como Alexandrino.
A Defesa do “Textus Receptus”
Os defensores deste discutido texto tornaram-se tão fanáticos, que não admitiam que ele fosse alterado ou melhorado. Aqueles que ousaram divergir foram tachados de irreverentes e sacrílegos.
Sendo que Westcott e Hort rejeitaram totalmente o texto tradicional, suas idéias não foram bem aceitas pelos conservadores. Em breve, intelectuais se levantaram como denodados paladinos do texto aceito por todos durante 300 anos. Dentre esses defensores destacam-se Scrivener, Edward Miller e John Burgon. O argumento principal destes estudiosos em defesa do “Textus Receptus” era este: “Se as palavras da Escritura tinham sido ditadas pela inspiração do Espírito Santo, Deus não teria permitido que elas fossem corrompidas no decurso de sua transmissão.” Os argumentos apresentados em defesa do “texto recebido” não tiveram a ressonância que eles esperavam e após a morte deles esta polêmica foi para sempre encerrada.
Edições Gregas Após Westcott e Hort
A) Herman Von Soden: (1852-1913)
Graças ao apoio financeiro da Sra. Elise Koenigs, Von Soden, professor em Berlim, pôde enviar muitos estudantes que tinham sido treinados por ele para examinarem manuscritos nas bibliotecas e museus da Europa e do Oriente Médio. Ele identificou três grupos de manuscritos, designando-os pelas letras gregas K, H, I. Estas letras são inicias das seguintes palavras: K de koinê – comum, H de Hesíquio e I de Siríaco de W. H.; O H incluiria o Neutro e o Alexandrino de W. H., enquanto o I eqüivaleria ao Ocidental dos dois professores da Universidade da Universidade de Cambridge.
Discordando da classificação dos manuscritos em unciais e minúsculos e do agrupamento em famílias de W. H., idealizou nova classificação que indicasse a idade, conteúdo e tipo de cada manuscrito. Por ser um trabalho complexo, difícil de ser aceito na prática, redundou num grande desapontamento para a Crítica Textual, por isso foi totalmente posto de lado.
Como resultado de suas pesquisas e de seus muitos auxiliares, Von Soden publicou a História do Texto Bíblico em 2.203 páginas de seus prolegômenos. Este trabalho, resultado de prolongada investigação e intensivo estudo, tem sido descrito como um magnífico fracasso.
B) Bernard Weiss (1827-1918)
Enquanto professor de Exegese Grega, em Berlim, editou o Novo Testamento em três volumes. Sendo um profundo exegeta tratou com eficiência de problemas teológicos e literários do texto do Novo Testamento.
Seu trabalho se caracteriza pela valorização das evidências internas, discordando assim de Westcott e Hort, que se apoiavam em evidências externas, concordando, porém, com eles em classificar o manuscrito Vaticano como o melhor.
Weiss discorda também dos defensores da teoria genealógica na classificação dos manuscritos bíblicos.
C) Eberhard Nestle (1851-1913)
A edição do Novo Testamento Grego mais amplamente usada, foi preparada por Nestle, através da Sociedade Bíblica de Stutgart (1898). Seu texto é baseado em uma comparação dos textos editados por Tischendorf, Westcott e Hort e Weiss. A obra de Nestle representa o aperfeiçoamento do texto do fim do século XIX. Sendo notável pela síntese maravilhosa do Aparato Crítico e pela precisão da grande soma de informações textuais, sua edição tem sido muito apreciada.
Uma nova edição do Novo Testamento Grego de Nestle foi planejada, quando a Sociedade Bíblica Britânica comemorou seu sesquicentenário (1954). O texto foi preparado por Kilpatrick, com a ajuda de Erwin Nestle e Kurt Aland (Londres – 1958). Houve mudanças numas 20 passagens e diversas alterações na ortografia, acentuação e no uso de parênteses.
D) Nova Edição para os Tradutores da Bíblia.
Em 1966, após uma década de trabalho por uma Comissão Internacional, cinco Sociedades Bíblicas publicaram uma edição do Novo Testamento Grego com a finalidade de ser usada pelos tradutores da Bíblia.
As edições do Novo Testamento Grego, aqui apresentadas, são as mais importantes, mas o seu número exato desde 1514 até nossos dias é difícil de ser avaliado. Bruce, cuja autoridade em problemas de crítica textual ninguém discute, calcula que mais de mil edições já apareceram.
Pedro Apolinário, História do Texto Bíblico, Capítulo 14.
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